terça-feira, 16 de novembro de 2010

Crônica - Rita Elisa


Foto: José Antônio Braga Barros 

Passei vários dias procurando um par de asas de anjo, necessitava delas para uma poética apresentação. 
  Pedi aos amigos, fui às paróquias e até mesmo aos museus. Os amigos não possuem asas, nas paróquias não há estoque de asas e no museu o par de asas é tombado como patrimônio... sem condições de voar.

  Pensei em me apresentar com anjo sem asa. Mas, o que há de mais atrativo em um anjo são as asas. Lembrei-me do meu anjo da guarda... e ainda mais, lembrei-me das diversas formas de se conseguir as asas de um anjo, segundo Marina Colasanti, certa mulher que não suportava mais a solidão em que vivia resolveu tomar formicida e na hora exata, ouviu batidas na porta, era o seu tão querido anjo da guarda que vinha em seu socorro. Daí, a mulher, para deixar de ser só, colocou no pé do anjo uma argola de ferro e o prendeu no poleiro. É claro que ela aparou as asas do anjo, para que ele não voasse mais. Achei brutal demais, teria de cortar as asas de meu anjo, algo injusto, desisti da idéia. Depois me veio uma imagem linda de Deus com asas, como disse Rainer Maria Rilke em seu livro a respeito de Deus, que de vez em quando Deus paira o olhar sobre uma nação, como se fossem asas. Talvez eu conseguisse as asas de Deus, talvez não... estaria Ele olhando exatamente para essa linda cidade?

  Na verdade eu só queria fazer uma alegoria junto à mensagem poética de um anjo em forma de Mãe. Tudo por um poema. Amo a poesia e ia participar de um sarau junto com amigos poetas. Nada mais justo que deixar a criatividade aflorar... em poesia. Sim, no toque leve de um poema. Como escreveu Walt Whitman em suas Folhas das Folhas de Relvas: “Seja você quem for, / agora eu ponho em você a minha mão /para que você seja o meu poema (...)”. O encantamento da poesia me levou às nuvens. Creio que minhas asas é a poesia, é o que me faz voar, superar barreiras, olhar o horizonte mais distante e voar na direção certa, sem reservas, sem medo, trans-pondo todos os obstáculos.

  Para minha surpresa me lembrei de uma história mais forte, algo que sempre faz com que eu repense o valor da alegria e do sofrimento. Havia um homem que dormia tran-qüilo à margem de um rio, sossegado, feliz. Acordou, durante a noite, com o peso de uma pessoa o prendendo ao solo, ele tentou educadamente se esquivar da pessoa, não conseguiu, assustado lutou para sair; mas a pessoa era forte, manteve o homem preso ao chão. A luta durou horas. Esse homem, durante a luta, foi ferido na perna. O dia clareou e o homem continuou preso ao chão. Até que os primeiros raios de sol deixaram à mostra a figura de com quem ele estava lutando... um anjo. O anjo levantou-se, o homem se viu livre, porém, vislumbrado, pediu ao anjo uma benção. A benção do anjo foi rápida, ele tocou na perna do homem, bem no ferimento, fazendo com que a ferida nunca cicatrizasse. Uma dor que às vezes nem era sentida, outras vezes latejante, uma maneira de manter viva a lembrança. Mostrando que às vezes coisas ruins acontecem e são bênçãos de anjo, coisas que não podemos entender e, por isso, algumas vezes, lutamos com nosso próprio guardião que nos impede a todo custo de algo trágico. Nossa noite escura. Mas, quando o dia amanhece passamos a conhecer o cuidado divino por nós, pela nossa finitude.

  Histórias de anjo há muitas, asas de anjo nem tanto. Depois de muito procurar achei um par de asas em uma casa de comércio de artigos de festas. Foi uma alegria sair daquela loja levando embaixo do braço um par de asas... se bem que na verdade preferia ter saído de lá com essas asas em cima dos ombros, voando em pleno centro da cidade, sob olhares dos transeuntes que me apontariam como uma poeta louca em forma de anjo.



Rita Elisa Seda

Cronista, poeta, biógrafa, fotógrafa e jornalista.
 
 
 

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