quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Crônica - Rita Elisa Seda

  Férias mesmo com F maiúsculo só em cidade à beira mar, com um oceano por testemunha. Nasci e fui criada sob esta regente lei. Acho que, por ser mineira, a pratico anualmente. Antes eu seguia a lei das férias (férias escolares, do marido e coisa e tal...), mas, agora, faço minhas próprias férias – preciso de um descanso... tudo bem, vou ver o mar! Isso alivia minha alma.
  Diante do mar o tempo não passa... basta fechar os olhos e tudo volta. Como agora me recordando de uma tarde em Caraguatatuba – litoral norte paulista, juntos minha família, meus pais (Rita e Ivon) vindos de Minas, meus sogros (Geni e Kurt) que voltavam de uma pescaria no Mato Grosso do Sul. Eram tantas as novidades: pesca, caça, comida exótica, mosquitos e água. Sr. Kurt explicava o quanto o por do sol no Pantanal era lindo, deslumbrante... e como ele deixou alguns peixes escaparem, por serem bem grandes. Muitos pescados, todos com vara de resina, linha com grafite enrolada em carretilha tatuzinho. Iscas artificiais e naturais. Era muita informação sobre acessórios para pescaria, como alugar um barco, que roupa usar, como preparar o engodo, de que maneira deve-se jogar a linhada, como saber se o peixe ‘mamava a isca’, as táticas de fisgar o peixe, a briga para trazê-lo à tona e ainda mais... como içá-lo ao barco. Nossa... só de ouvir eu já ficava cansada, eu que só pego uns lambaris e olhe lá... imagine, então, o papai que ouvia toda a conversa na roda dos homens pescadores. Logo veio a pergunta: ‘você já pescou um peixe assim, Ivon?’ Papai, homem das letras, nunca foi chegado à pescaria, observou: ‘nunquinha, jamais pesquei um peixe assim tão grande’. Meu sogro emendou: ‘mas, um peixe assim, do tamanho médio, você fisgou, né?’. Sem pressa, tomando uma cerveja, respondeu: ‘acho que não. Não entendo muito de pesca...’ meu sogro foi comentando... ‘eu entendo de pesca, isso eu entendo...o que não entendo é de preparar o peixe. Comer eu como, mas fazer o peixe, isso não sei mesmo!’ Papai olhou dos lados, fez um rã rã característico dele, um pigarrear que conheço muito bem. ‘Pescar não pesco, não!... entretanto sei fazer um bom peixe com pirão, na folha de bananeira, que é uma delícia... pena que você não trouxe esse peixe tão grande, senão eu ia fazê-lo para a gente’.
  Daí por diante papai se entusiasmou, contou os pormenores culinários do prato exótico. Os olhos de meu sogro até faiscaram de vontade de ver esse delicioso peixe preparado e, ás vezes, até engolia a seco, como se comesse uma posta do peixe. Papai, orgulhoso de seu peixe, deixou todos com os sentidos aflorados, tanto que ao terminar houve um silêncio de palavras que não foram ditas... Deglutidas com peixe. Sr. Kurt foi eficaz: ‘Ivon, você me fez mudar os planos, amanhã não farei churrasco. Não tenho esse peixe aqui, porém tenho um quase igual, peixe de couro, um pouco menor, tem apenas sete quilos, que eu guardava para comer na Semana Santa. Hoje à noite vou tirá-lo do freezer para que você possa fazê-lo para nós amanhã’. Ouviu-se um hurra geral, todos abençoando a decisão, nem escutaram o engolir seco de um historiador.
  O dia amanheceu maravilhoso, o sol anunciava calor, céu claro, sem nuvens. Tomei café, comi pão com manteiga, tudo certinho, dentro da rotina. Perguntei pelo meu pai, me informaram: ‘na cozinha, preparando o peixe. Aliás, ele mandou um recado para você ir lá falar com ele!
  Não me fiz de rogada, fui até a porta da cozinha e bati uma vez. ‘Pai, você está aí?’ A porta foi aberta com uma fresta, papai me olhou, olhou dos lados, viu que eu estava sozinha, abriu um pouco mais a porta e me puxou para dentro. Fechou.
  ‘Pai... o que está acontecendo?’ Em cima da pia, um enorme peixe olhava esbugalhado para nós. E, só! Nem sinal de panelas, fogo aceso, condimentos, e tudo que o valha para fazer um bom peixe. ‘Filha me ajude... eu sei fazer o peixe, ou melhor, como se faz o peixe, mas nunca o fiz. Só li a respeito, afinal, você me conhece, se leio eu viajo com as palavras, para mim eu sabia fazer, mas não estou dando conta, nem sei por onde começar’. Trancamos a porta em segredo de estado, sem deixar que alguém aparecesse e nos tirasse da concentração.
  Bem, para começar, nós cortamos a cabeça do peixe. Depois que abrimos e limpamos o peixe o colocamos numa assadeira forrada com folhas de bananeira que dona Geni, logo de manhã, pegou no quintal e as deixou estrategicamente na cozinha. Untamos todo o peixe com pirão... por dentro e por fora. Enrolamos o peixe com as folhas de bananeira e amar-ramos. Foi só quando chegamos a esse ponto que papai se deu conta de que o peixe estava quase pronto. Só aí ele relaxou e sorrindo me deu um beijo no rosto e suspirou. Terminamos a tarefa. Abrimos a porta e papai, enxugando as mãos no avental sujo de pirão, anunciou: ‘o peixe já está no forno, daqui mais ou menos uma hora estará pronto’. Na verdade foi um dos peixes mais gostosos que já comi.
  Receita de como fazer esse peixe especial do Ivon:
  Em primeiro lugar o peixe tem de ser de couro. Corta-se a cabeça do peixe e a deixa para o pirão. Abra o peixe de fora a fora, limpe-o todinho, lave-o em água corrente e o enxugue com pano. O coloque em cima de folhas de bananeira que devem estar sobre uma assadeira. Salgue-o por dentro e por fora e deixe-o descansando (não entendo esse dito antigo ‘deixar descansando’ quando se trata de alimento a ser preparado... mas é assim que se fala, então... tudo bem). É hora de preparar o pirão. Coloque a cabeça do peixe em uma panela, cubra-a com água. Ligue o fogo e deixe ferver em fogo baixo até que as carnes internas e os olhos desprendam. Desligue. Raspe por dentro e por fora as carnes que ainda estiverem grudadas, faça isso enquanto a água ainda estiver quente, pois será mais fácil – mas, cuidado para não queimar os dedos. Retire da panela a carcaça e as cartilagens. Coloque nesse caldo: sal, uma colher de azeite, salsa e cebolinha. Ligue nova-mente o fogo e quando chegar à fervura comece a despejar a farinha de rosca, vai colocando devagar e ao mesmo tempo vá mexendo para não ‘empelotar’. O pirão não deverá ser muito duro nem muito mole – o ponto ideal é quando você levanta a colher e ele cai devagar em grandes pingos. Abra o peixe e coloque metade do pirão, espalhando bem. Feche o peixe com alguns pontos feitos com fio dental ou lacre-o com palitos de dentes (se assim o fizer lembre-se de avisar aos comilões que há palitos no peixe), depois passe a outra metade do pirão em cima e embaixo do peixe. Embru-lhe-o na folha de bananeira e, se preferir, para maior firmeza, amarre-o com barbante. Leve ao fogo pelo tempo necessário para o cozimento. Pode abrir a porta do forno de tempos em tempos para verificar. Quando a folha de bananeira estiver bem escura, abra um buraquinho e descubra se está no ponto que você quer. Bom apetite, acho que vou para o Mato Grosso pescar... ah! se vou!



Rita Elisa Seda
Cronista, poeta, biógrafa, fotógrafa e jornalista.



4 comentários:

  1. Minha amiga, amei!!!
    Adoreiiiiiiiiiiii...Bom demais!
    Descobri aqui, mais uma face, outro estilo literário de Ritelisa: Gastronomia Literária.
    Nossa, que legal!!! Me diverti...ri até, sozinha...kkkkk
    Imagino a cara do seu Ivon, diante do peixe em cima da pia, sem saber o que fazer???
    Cômico, da forma que você escreve...
    Seu Ivon, foi salvo por Ritelisa!!!
    Parabéns Ritelisa, dom é dom, talento é talento, carisma é carisma!!!
    Deus a conserve, e a inspire sempre, com seus vários estilos literários, que enchem nossos olhos, nossa alma e espírito com seus textos, suas crônicas, suas poesias...

    Beijos, forte e carinhoso abraço!!!

    Silvinha

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  4. Silvinha, esse dia ficou na nossa história como o Dia do Peixe do Ivon. Foram tantas emoções que até hoje me lembro da carinha do papai espiando pela porta da cozinha! Papai é ímpar! Beijos, felicidades e a paz!

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