terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Crônica de Natal - Rita Elisa

  Juventude, época boa que não volta... jamais. Ser jovem é comungar Fernando Pessoa tendo em si todos os sonhos do mundo. Ser jovem é falar pelos cotovelos, é mudar de humor no dia a dia, às vezes, de hora em hora. Ser jovem é ter hormônios aflorando por todo o corpo.
  Foi nessa convergência entre o ser e o poder, que jovem, com apenas 14 anos, tive um Natal diferente. Resolvi, com o aval de meus pais, passar o Dia de Natal com os velhinhos no asilo São Vicente de Paulo. Um ano antes, tinha perdido minha avó, italiana da Sardenha, mulher forte de nome Josefa, mais conhecida como Pepa. Dormíamos no mesmo quarto, minha madrinha de batismo, por isso esse apreço especial. O Natal seria diferente sem ela.
  Fui para o asilo logo de manhã, passei de quarto em quarto conversando com os internos. Todos sabiam que aquele era um dia especial. Alguns cantavam, outros choravam. Até que entrei no quarto de uma velhinha que mal podia respirar, estava com “sororoca”, lembrei-me da vó Pepa. Resolvi ficar instantes a mais com a velhinha doente. Puxei uma cadeira, sentei-me, ela me estendeu a mão. Mão clara salpicada de pintas e manchas senis, pele mole, veias saltadas, unhas grandes e fracas. A palma da mão cheia de calos indicava que até pouco tempo ela tinha trabalhado duro. Num ímpeto de serenidade eu beijei aquela mão. Foi o suficiente para ver um esboço de sorriso nos lábios da mulher que me olhou com olhos azuis de admiração, como se eu tivesse feito a melhor coisa do mundo. Não conseguiu falar, mas sorriu... às vezes o sorriso fala mais do que mil palavras. Segurou firme minha mão e fechou os olhos. A força da mão dela me deixou paralisada. Passei horas assim, presa a uma velhinha desconhecida, unida pela ponte das mãos.
  Pessoas entravam e saíam do quarto e eu ali. De repente senti a força da mão dela diminuir, levantei-me e vagarosamente fui colocando aquela frágil mão em cima do colchão. No momento que ia largá-la, percebeu, e para meu espanto, apertou a minha mão com mais força, tanto que, no susto, sentei-me novamente. O som da respiração piorou. Apareceu uma Irmã de Caridade, achei que era hora de sair, mas aquela mão não me largava. Ainda me lembro do cheiro doce de magnólia que a mão exalava. Tossi, limpei a garganta, fiz de tudo para que a velhinha abrisse os olhos, para que eu pudesse me despedir e sair. Foi somente quando eu falei “Feliz Natal” para a Irmã, que a velhinha abriu os olhos e me fitou novamente. Falou algo, mas as palavras vieram acompanhadas de muita tosse. Até que a “sororoca” cessou, os olhos dela brilharam, largou a minha mão e tentou se ajeitar na cama. A cura. Eu fui ajudar. Apoiei meu corpo no dela para puxá-la para cima... inesperadamente ela me abraçou com força. Ouvi nitidamente “Feliz Natal Camila” sussurrado ao meu ouvido. Já ia lhe responder quando senti o corpo dela amolecer em meus braços. Acomodei-a como quem cuida de um pássaro ferido. A Irmã fez uma oração e saiu. Eu ainda fiquei ali olhando para minha vovozinha postiça que teve tempo de se despedir de sua Camila, também, postiça!
  Cheguei em casa chorando. A partir daí meus pais impetraram a ordem de que Natal era dia de ficar com a família... e pronto. Acho que tomaram essa decisão porque eu não parava de chorar, passei horas e horas me esvaindo em lágrimas. Mas, cá para nós... acho que foi por causa do excesso de hormônios.




Rita Elisa Seda

www.ritaelisaseda.com.br

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